Devemos debater sobre o direito � comunica��o com mente aberta

 

MarcoNavas-Alvear*

 

Estamos perto da primeira fase da C�pula Mundial sobre a Sociedade da Informa��o e um dos resultados mais esperados � o pronunciamento sobre os direitos humanos em mat�ria de comunica��o.

 

Neste �mbito, intensifica-se o debate sobre o conceito e os conte�dos do direito � comunica��o. No entanto, � preocupante ver que uma parte deste debate est� sendo realizada a partir de vis�es parciais que podem induzir a resultados est�reis. Neste sentido, � especialmente inquietante essa pobre discuss�o sobre o tema a partir de uma perspectiva latino-americana.

 

Considerando esta situa��o, queremos ressaltar alguns elementos que talvez possam contribuir para uma reflex�o e avivem uma discuss�o mais profunda e integral. Assim, tamb�m lan�amos um apelo para que o assunto seja abordado com mente aberta e a partir de todos os �ngulos poss�veis.

 

Antecedentes

 

Proposto pela primeira vez por Jean D�Arcy no fim dos anos 60 no contexto do que, na �poca, era um fervente debate acerca de uma nova ordem internacional em comunica��o, o tema do direito � comunica��o ainda � uma id�ia inacabada e inovadora diante das formas tradicionais de ver a comunica��o, que v�o dos direitos ao campo da comunica��o.

 

A proposta b�sica de D�Arcy pode ser resumida nestas palavras: �Hoje em dia, parece poss�vel dar um novo passo adiante: o direito do homem � comunica��o como resultado de nossas �ltimas vit�rias contra o tempo e o espa�o, assim como nossa maior consci�ncia sobre o fen�meno da comunica��o. Este direito fundamental estava impl�cito e subjacente desde a origem de todas as liberdades conquistadas, tais como a da opini�o, a da express�o, da imprensa e da informa��o. O aparecimento das m�quinas, que se interp�em entre os homens, fez-nos esquecer de sua exist�ncia. Hoje, vemos que este direito engloba todas as liberdades, mas, al�m disso, traz, tanto para os indiv�duos quanto para as sociedades, as no��es de acesso e participa��o na informa��o e na corrente bilateral da informa��o, no��es necess�rias, como sabemos, para o desenvolvimento harmonioso do homem e da humanidade.�1

 

A pergunta � qual nos levam estas palavras � se os pressupostos atuais dos Direitos Humanos em comunica��o s�o ou n�o s�o mais adequados para englobar a comunica��o como processo interativo bi ou multilateral e de di�logo.

 

Como resposta a esta interroga��o, criou-se a necessidade de construir um novo direito que, para ser reconhecido formalmente, dever� passar por um longo processo.

 

O problema reside justamente no fato de o direito � comunica��o ser hoje em dia mais que um direito definido, conforme destacamos anteriormente, sendo um campo disciplinar a partir do qual podemos discutir e compreender todos os impactos que fen�menos como a digitaliza��o e a converg�ncia das tecnologias da comunica��o e informa��o e a pr�pria comunica��o de massas produziram na vida social e no quotidiano das pessoas.

 

 

 

Neste sentido, a tarefa de reflex�o avan�a a passos lentos e existem d�vidas plaus�veis de que se possa chegar a tempo para conseguir, na C�pula Mundial sobre a Sociedade da Informa��o, uma Declara��o dos Direitos � Comunica��o.

 

Diante desta situa��o, n�o podemos nos esquecer que as tradicionais liberdades de express�o e informa��o t�m a vantagem de serem reconhecidas como direitos fundamentais nos principais instrumentos internacionais de Direitos Humanos, assim como em praticamente todas as constitui��es do mundo.

 

Alguns argumentos

 

At� agora, muitas das reflex�es sobre o tema levavam a construir um novo direito � comunica��o que, segundo alguns autores, era radicalmente diferente das liberdades de express�o e informa��o. Um direito que rompia com os direitos existentes. Nesta linha, autores como Antonio Pascuali, por exemplo, refletem sobre o tema sugerindo a necessidade de um corte radical entre os velhos direitos na comunica��o - as liberdades � e o novo direito.1

 

Apesar disso, seus argumentos, pelo menos a partir de uma teoria dos direitos humanos, s�o discut�veis. N�o s�o levados em considera��o os avan�os no que diz respeito �s exigibilidades a partir dos direitos j� existentes e as possibilidades de lhes dar novos alcances adaptados � �poca atual. Isto, segundo o sentido que o autor citado anteriormente d� � sua reflex�o, n�o � poss�vel. Tampouco se considera o car�ter sistem�tico dos direitos humanos que faz com que sejam vistos como um todo � um corpus integral -.1

 

Pelo visto, o novo conceito de direito � comunica��o, contrariamente ao que pensam alguns analistas, n�o deveria, em nossa opini�o, querer substituir as no��es anteriores, mas sim inclu�-las dentro de uma vis�o integral e interativa da comunica��o como processo de interc�mbio de significados.

O mais grave � que esta linha de an�lise baseada na descontinuidade e oposi��o entre as liberdades de express�o e informa��o e o novo direito � comunica��o pode levar a uma estrat�gia enganosa na qual os setores da sociedade civil apostem tudo no reconhecimento de um novo direito e esque�am os outros procedimentos de a��o. A pergunta seria colocada neste contexto: E enquanto conseguimos que seja reconhecido o novo direito, o que acontece?

 

N�o existe argumento forte o bastante que impe�a ver uma continuidade nos direitos, produto de uma evolu��o hist�rica dos padr�es internacionais de prote��o dos direitos humanos.

 

Apesar de terem surgido em contextos hist�ricos anteriores � o das revolu��es burguesas ocidentais (s�culo XVIII) no caso da liberdade de express�o, e o do p�s-guerra (s�culo XX) no tocante � liberdade de informa��o -, estes conceitos est�o continuamente sendo revistos, produto da tarefa de coletivos sociais que pressionam para que eles tenham novos alcances. Uma amostra disso � a relativamente recente Declara��o de Princ�pios sobre a Liberdade de Express�o da Comiss�o Interamericana de Direitos Humanos, na qual outorgam novos alcances a este direito, reconhecido, neste caso, no artigo 13 da Conven��o Americana sobre Direitos Humanos.

 

 

[1] Cf. �Breve glosario razonado de la Comunicaci�n y la Informaci�n para comprender y comprenderse mejor�. Doc. Caracas, mar�o de 2003.

[1] Consultar sobre o tema o Curso Sistem�tico de DDHH no site www.iepala.es

 

Ent�o, por que desconsiderar os direitos existentes e n�o os ver como oportunidades de a��o. Tom�-los como instrumentos de luta para um direito � comunica��o mais amplo depende muito � como diria Buenaventura de Souza Santos � do �uso alternativo� que se pode dar a estes conceitos e da capacidade dos agentes sociais em conceber novos significados a partir desses conceitos, redescrevendo � nos moldes de R. Rorty em sua obra Iron�a, Contingencia y Solidaridad � ou, se preferirem, reescrevendo e dando outro significado a categorias como �liberdade de informa��o� ou de �express�o�.

 

Neste sentido, recomendamos uma estrat�gia heterodoxa e n�o radical de negar e deslegitimar os direitos reconhecidos, procurando inventar outro direito diferente, tarefa que, por outro lado, � ilus�ria.

 

O grande desafio �, ao mesmo tempo que se continua lutando a partir dos direitos reconhecidos, partir da filosofia para apresentar propostas concretas sobre esse direito � comunica��o. Este trabalho est� sendo realizado por grande parte dos interessados no tema, organiza��es e academias, a partir de v�rias perspectivas e com diferentes intensidades.

 

O problema passa tamb�m pela articula��o dos fundamentos conceituais do direito � comunica��o e por eus conte�dos. Atualmente, existem muitos trabalhos que enfatizam a complexidade do tema e que, a partir de uma ret�rica filos�fica, procuram salientar a import�ncia de um novo direito � comunica��o, experimentando defini��es de tipo normal. Sem deixar de ter import�ncia, esta a��o deve desembocar num trabalho de defini��o mais t�cnico sobre quais seriam os direitos espec�ficos � comunica��o que ainda n�o foram tratados dentro desta perspectiva interativa e de di�logo que sup�e a comunica��o.

 

Certos trabalhos recentes fizeram finca-p� neste exerc�cio de precis�o, tentando integrar elementos dos direitos anteriores � j� consagrados � aos novos direitos em mat�ria de comunica��o. Assim temos, por exemplo, o projeto de Declara��o sobre o Direito � Comunica��o de Cees Hamelink, que prop�e como elementos-chave neste campo alguns elementos j� existentes enquanto direitos, agrupando-os em direitos de informa��o, direitos culturais, de prote��o, coletivos e de participa��o. 1

 

A lei internacional � um �processo vivo�, disse o pr�prio Cees Hamelink, ao responder �s cr�ticas a um documento, formuladas pela organiza��o Article 19.1 Esta afirma��o teria, em nosso opini�o, pelo menos duas implica��es: a primeira � que a partir dos direitos humanos j� reconhecidos pode-se ir adiante na tarefa de lhes dar significados mais abrangentes que possibilitem visualizar e proteger a �rea da comunica��o e, a segunda seria desenvolver um processo mais lento de introdu��o de novos direitos espec�ficos que estivessem em harmonia com os j� existentes.

 

A quest�o � saber se estas duas implica��es se referem a op��es antag�nicas ou se se pode optar por uma estrat�gia que as integre. Consideramos que o antagonismo mencionado � irrelevante diante da necessidade de integrar as duas perspectivas. Isso s� � poss�vel se se fizer um bom trabalho t�cnico de defini��o dos direitos.

 

Trabalhar sem colaborar para uma defini��o s�lida do direito � comunica��o ou, como fez Hamelink, segundo a cr�tica de Article 19, propondo conte�dos concretos, mas que constitu�am uma repeti��o de textos sobre direitos j� consagrados ou, o que � ainda pior, com novas formula��es que afetam direitos antigos como a liberdade de express�o, s�o todas alternativas que podem levar, mais que a um resultado efetivo, a graves retrocessos no posicionamento sobre o tema.

 

[1] Ver www.crisinfo.org

[1] Ver as cr�ticas de Article 19 em www.article19.org/1512.doc , e a resposta de Hamelink em //lac.derechos.apc.org/wsis

 

 

No tocante � cr�tica sobre o documento de Hamelink, coincidimos em boa parte com as primeiras cr�ticas formuladas em Article 19. Hamelink, numa recente resposta, n�o rebateu o argumento de que seu documento duplica formula��es de direitos j� existentes e o faz de forma pol�mica, ainda que tivesse destacado tratar-se de uma esp�cie de primeira tentativa que, em fun��o disso, � perfect�vel. Tamb�m disse algo muito importante: que o direito � comunica��o poderia ser um tipo de �guarda-chuva� que re�ne todos os direitos relacionados, id�ia esta que partilhamos.

 

Portanto, insistimos, sobretudo a partir de uma perspectiva latino-americana, em que � poss�vel trabalhar garantindo os direitos existentes e, ao mesmo tempo, desenvolvendo propostas de conte�dos espec�ficos de novos direitos � comunica��o que tenham que ver com necessidades concretas de acesso, participa��o, uso e apropria��o das TIC no contexto da Sociedade da Informa��o. Assim, � preciso desenvolver a melhor maneira de enunciar estas necessidades como direitos, mas tamb�m � necess�rio criar uma harmoniza��o entre estes conceitos t�o recentes e os direitos j� existentes.

 

Al�m disso, a partir de uma �tica estrat�gica, devemos continuar o trabalho de nova significa��o ou reescrita que amplie a prote��o que possa existir a partir dos direitos tradicionais, sobretudo atrav�s da interposi��o de demandas e peti��es com o conseq�ente trabalho junto aos tribunais e ju�zes, al�m das a��es de conhecimento e socializa��o. Estes s�o aspectos que n�o podemos negligenciar.

 

Mais do que superar estas dificuldades, o mais importante deste trabalho, a partir de um enfoque de direitos realmente integral e sistem�tico, � enfrentar uma �real pol�tica� dos governos e organismos internacionais decididores que privilegia o crescimento econ�mico em detrimento das necessidades humanas, e come�ar a promover uma no��o de dignidade humana numa sociedade da informa��o com liberdade, mas, ao mesmo tempo, justi�a e solidariedade.

 

Em soma, trabalhar a partir do j� existente n�o exclui procurar novos conceitos para os assumir e reivindicar como direitos. N�o existe oposi��o entre as duas tarefas. Este � um posicionamento mais realista e � urgente faz�-lo a partir da realidade latino-americana.

 

 



* Professor de Direito � Informa��o da Pontif�cia Universidade Cat�lica do Equador.

Consultor do Projeto Latino-americano de Meios de Comunica��o - Funda��o Friedrich Ebert

E Mail: [email protected]